Os pequenos respingos da vida

Outro dia, eu estava no avião e minha caneta nova derramou tinta preta no meu vestido novo. Era meu tipo favorito de caneta – ou era até então: uma Bic Z4

Redação | 1 de Abril de 2020 às 01:01

© The Voorhees -

Outro dia, eu estava no avião e minha caneta nova derramou tinta preta no meu vestido novo. Era meu tipo favorito de caneta – ou era até então: uma Bic Z4 Roller. A tinta de verdade era o que me fazia amar as Z4 Rollers. É mais líquida do que a tinta que sai de uma Bic comum, ou seja, mal é preciso tocar o papel para a caneta se mover sobre ele. As Z4 se parecem com canetas-tinteiro, mas sem as características trabalhosas da caneta-tinteiro. Eu as amava profundamente.

Mas amava ainda mais meu vestido novo. Pagara por ele o preço cheio, coisa que nunca faço. Mas o vestido valia a pena. Era informal e um pouco chique ao mesmo tempo: sem mangas, decote canoa, acinturado, com a saia levemente franzida. Tinha finas listras verticais azuis e brancas que me favoreciam, e o tecido era um misto de algodão com algo artificial que, ainda assim, tinha toque macio e não falso mas não exigia manutenção – nem lavagem a seco, nem ferro. O vestido praticamente pulava da secadora e ficava em pé sozinho, sem rugas e pronto para sair. Também tinha minha característica favorita num vestido, ou seja, bolsos laterais. Eram bolsos ocultos, embutidos nas costuras, que eu gostava ainda mais.

Depois da explosão no avião, ataquei os grandes respingos de tinta com água e um guardanapo, mas isso só firmou as manchas. Assim que pousamos, corri até uma loja no aeroporto e comprei um daqueles pacotinhos de lenços descartáveis com removedor de manchas e tentei esfregar os respingos outra vez. Sabia que seria inútil, e foi. Fui para o hotel, troquei de roupa e pus o vestido arruinado na mala.

Não aguentaria jogá-lo fora; talvez alguém inventasse um removedor de tinta mágico na semana seguinte, e eu teria descartado o vestido à toa.

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Às vezes, quando algo ruim me acontece, pratico um joguinho. O objetivo é me perguntar se a coisa ruim que acabou de acontecer tem algum lado bom. É brega, mas confortador; se tentar, você vai se surpreender. Há alguma coisa boa, mesmo que minúscula, mesmo que você tenha de se esforçar para achar, em quase todos os infortúnios. Nunca pensei que diria isso, mas posso ver até o lado bom de meu câncer. Levei muito tempo para me sentir assim e não vou entrar em detalhes, mas, quando a gente não morre – uma grande ressalva, eu sei –, o lado bom existe, juro. Mas pensei e pensei sobre meu vestido arruinado e qual seria o lado bom e, simplesmente, não consigo encontrar nenhum.

Fiz essa pergunta a uma amiga, e ela disse que o vestido arruinado era uma daquelas lições sobre a impermanência das coisas, sobre o desapego. Que tudo muda e que a vida tem a ver com deixar pra lá.

Levei isso em consideração. E pensei: isso eu já sei. Ora, todo mundo com mais de, digamos, 40 anos não sabe? Já não perdemos muitas coisas? Na verdade, não é para soar lúgubre demais, mas às vezes não parece que a vida é só um grande pegar e largar atrás do outro – os filhos, o clima que faça sentido, pessoas amadas que se mudam para longe ou morrem cedo demais?

Tantas perdas! Um vestido novo não é uma demonstração de apego a objetos materiais (está bem, talvez um pouquinho). Eu sabia que algum dia o vestido ficaria velho. Mas comprar um vestido novo é um ato de esperança, uma demonstração de espírito diante de um universo indigno de confiança.

Pelo menos, meu vestido novo era assim. Tinha sido um ano difícil. E agora meu emblema de esperança estava com aquelas grandes manchas pretas por todo lado.

Mas quer saber? É a isso que me apego. Possibilidade. Prazer. São menos elevados do que esperança, menos crédulos, menos baseados na fé, mas também mais acessíveis.

Ontem fui à feira de usados e achei uma travessa linda. Ela praticamente me ordena que asse um frango, convide alguns amigos e sirva o frango nela. Acho que farei uma torta invertida de pêssego para a sobremesa. Alguém, provavelmente eu, poderia largar e quebrar a travessa durante a noite – é improvável, mas possível, como a tinta da caneta que explodiu –, mas esse seria um motivo para não comprá-la?

Meu vestido e eu fomos ótimos enquanto duramos. Não importa. É assim que são alguns casos de amor.

POR JENNY ALLEN do livro Would Everybody Please Stop?

Extraído de Would Everybody Please Stop? Reflections on Life and Ot her Bad Ideas, de Jenny Allen. Publicado nos Estados Unidos por Sarah Crichton Books, selo de Farrar, Straus and Giroux.
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