Noites de fogo e diversão em Valência, na Espanha

Conheça a festa das fallas, que eletriza os cidadãos de Valência, na Espanha.

Redação | 22 de Janeiro de 2019 às 21:00

© BORIS STOIMENOV / SHUTTERSTOCK -

Conheça a famosa festa das Fallas da cidade espanhola de Valência:

Estávamos sentados em torno de uma mesa na rua inundada de luz, sem que a gelada brisa valenciana da meia noite conseguisse esfriar nossa expectativa.

Meus companheiros eram homens, mulheres e crianças do Casal Esparteros, um casal (clube) do bairro cujo principal propósito era fazer enormes personagens estilizados que se erguiam acima de nós enquanto ficávamos ali bebendo.

Era a segunda noite das Fallas, a festa mais importante de Valência, na Espanha, e senti que esses falleros (os que participam das Fallas) estavam dispostos a aprontar.

Um integrante mais velho do clube desenrolou um carretel e arrumou num anel em torno da mesa. Então, ele acendeu uma das pontas e, num instante, a longa tira de bombinhas explodiu à nossa volta.

Fechei os olhos com força. Quando os abri segundos depois, todos se abraçavam e davam vivas, o cheiro de pólvora queimada no ar. As gigantescas figuras artísticas sorriam lá em cima, como se participassem da festa.

Na cidade espanhola de Valência, a primavera é recebida com as Fallas, uma festa de rua que, em escala colossal, comemora a renovação e a criatividade comunitária.

Centenas de grupos ou clubes locais constroem sua coleção de figuras monumentais ou fallas (fantoches) e a deixam na rua para ser admirada. Na última noite, a maioria das fallas – a não ser uma ou duas das mais extraordinárias – é incendiada e destruída.

A festa das Fallas tem cinco dias de ataque aos sentidos, comemorados todo ano de 15 a 19 de março. É uma barragem de bandas, falleros fantasiados, fogos de artifício, touradas, paellas, bebidas sem fim e brincadeiras com rojões. Com até 41 metros de altura, supervisionando o caos, estão as fallas propriamente ditas, observadoras iluminadas dessa confusão.

Fui a Valência me embasbacar com as fallas gigantescas dentro da multidão. Assim, na manhã seguinte, sexta-feira, parti atrás de outra.

Com 16 metros de altura, a falla de Na Jordana era da mesma altura dos prédios de três andares que a cercavam. Na densa multidão que girava em torno da base do monumento, encontrei Alex Campón Moya. Fallero a vida inteira, o engenheiro industrial estava ansioso para falar da história da festa.

“Esta festa tem origem pagã”, explicou Alex.

Na Valência medieval, os muitos artesãos da cidade estendiam as horas diurnas de trabalho com velas durante o inverno. Essas velas ficavam presas num candelabro especial com muitos braços chamado parot. Quando a primavera finalmente chegava, os trabalhadores levavam seus parots para a rua e os queimavam para comemorar a mudança de estação. Com o tempo, os trabalhadores começaram a vestir seus parots com trapos velhos. “Em algum momento, as fallas se tornaram um modo de zombar de moradores conhecidos, como o padeiro ou o carpinteiro”, disse Alex.

Nessa evolução nasceu o niñot, ou efígie em forma de boneco. Hoje, os niñots ainda zombam de personagens famosos; Trump, Obama, Merkel e outros líderes mundiais apareceram com destaque. Em algum momento, o catolicismo foi jogado na mistura.“Este ano, nosso tema é a comédia, o teatro.” Alex apontou para cima. O principal niñot da falla se erguia acima de nós – uma mulher elegante de cabelo azul e rosto de Mona Lisa. Ela usava um ornamentado vestido de corpete no estilo do século 17, a saia rodada transformando-se num par de pavões abaixo dos quadris. Reunidos em torno da base havia 14 niñots. Alguns têm tamanho natural, outros são maiores, em várias poses engraçadas.

Era um trabalho absurdo e caro. Alex explicou que a falla desse ano custou 100 mil euros.

“Antigamente, o casal pagava tudo”, disse. Hoje, as fallas são patrocinadas. A de Na Jordana estava flanqueada por estandartes anunciando a cerveja Alahambra, e um gigantesco logotipo da Coca-Cola, formado por fieiras de lâmpadas brancas e vermelhas, pendia ali perto.

Também estavam à mostra algumas sátiras políticas não muito sutis. Alex apontou a figura em tamanho natural de um homem de cabelos brancos vestido como um ator antigo, usando um cinto de castidade. É Ximo Puig, explica, presidente do governo de Valência. “Ele estava aqui minutos atrás”, disse Alex. E o que esse digno político pensou da semelhança? “Ele adorou! Em Valência, a suprema honra é estar numa falla.”

Voltei para almoçar no Casal Esparteros, pois tinham me convidado para experimentar uma iguaria local: arrós amb fesols i naps.

Numa das pontas da sede do clube havia uma cozinha improvisada, com três fogões. Uma multidão de homens estava em volta de um panelão imenso e fumegante que continha quantidade suficiente do substancioso prato – arroz, carne de porco, feijão-branco, cebola e nabo – para alimentar 300 pessoas.

Minha apresentação explosiva à festa na noite anterior fora pelas mãos de José Vicente López, presidente do clube, um personagem redondo e rosado que explodia de orgulho por sua falla.

Mais do que arte pela arte, as fallas são uma competição. José explicou que, além da falla principal, cada clube também constrói uma falla infantil, projetada para as crianças. Os Esparteros tiveram a melhor falla infantil por 13 vezes nos últimos 74 anos – façanha nada desprezível, considerando-se que não estão entre os clubes mais ricos.

Esse ano, sua falla infantil, uma cacofonia em tons pastel de figurinhas elegantemente curvadas representando as quatro estações, ficou em oitavo lugar. “Achei que teríamos melhor resultado”, disse José, os olhos traindo a decepção. Então ele se animou. “Não ganhamos, mas sempre vencemos na festa e na animação.” Foi fácil acreditar nele.

Enquanto esperava que me servis- sem meu prato fumegante, conversei com Gemma Gómez, menina de 12 anos que representava um dos papéis mais importantes das Fallas.

“É uma honra”, disse Gemma. Miúda e bonita, com o cabelo preto puxado para trás e preso num complicadíssimo coque trançado, Gemma era a “fallera infantil” do ano; um tipo de princesa escolhida pelo clube. Ela explicou que seu dever era comparecer a eventos durante e ser a representante oficial da falla.

Ela recebe o apoio da rainha do clube – a fallera major – à sua princesa. A rainha é María Cruz, de 29 anos, que segura a mão de Gemma enquanto conversamos. A princesinha parece muito madura para a idade até que lhe pergunto do que mais gosta na festa. Ela dá um sorriso travesso: “Dos rojões.”

Em Valência, Gemma não está sozinha em seu amor por explodir coisas.

Eu estava na cidade havia 24 horas e já era óbvio que o constante barulho de explosões estava no coração das fallas.

Ao passar por uma rua até então silenciosa, dei um pulo de susto com a explosão súbita de um rojão e, quando me virei, vi uma criança, que mal tinha tamanho para andar, com outro pronto na mão. Em geral, o pai ou a mãe observava tranquilamente por perto – ou incentivava a criança a acender mais um.

Isso me irritou, e me vi desejando uma falla sem rojões, algo que os moradores me asseguraram ser impossível.

Entre eles estava Antonio Monzonís Guillén. Com 85 anos, o poeta valenciano conhecia melhor do que ninguém a festa famosa de sua cidade natal.

O talento artístico daquilo tudo inspirou o jovem Antonio, e a arte e a poesia se tornaram a obra de sua vida. Ele chegou a pintar as fallas; uma de suas peças está no Museo del Artista Fallero.

Muita gente como Antonio consegue fazer carreira nas artes graças à festa das Fallas.

Ele explicou que, no nordeste da cidade, fica um subúrbio fallero, a Ciudad del Artista Fallero. Aproximadamente 200 artesãos trabalham em cerca de 70 estúdios, a maioria com tamanho suficiente para abrigar a construção desses projetos imensos e demorados.

Na manhã seguinte, vou ao bairro dos artistas para visitar o museu. Lá, encontro Alfredo Nadal, pintor e especialista na história da tradição valenciana. “Aqui você pode ver como as fallas eram feitas tradicionalmente”, diz Alfredo, andando até uma figura enorme semiconstruída. Seu esqueleto de madeira estava meio exposto, coberto em alguns lugares por tiras de madeira, finas como junco, para lhe dar volume, depois revestidas com camadas e mais camadas de papel machê.

Enquanto andávamos entre as figuras estilizadas, Alfredo explicou que a confecção das encomendas maiores pode exigir um ano inteiro de trabalho de uma grande equipe. Mas hoje a madeira tradicional foi quase toda substituída por algo mais barato e fácil de manipular: isopor.

“Este novo método tem de mudar”, diz Alfredo. Quando as fallas se desfazem em chamas no domingo, o ar não se enche com a fumaça limpa de madeira, mas com as nuvens negras produzidas pela queima do plástico.

Isso não parece incomodar as centenas de milhares de pessoas que se reúnem para olhar as estruturas monumentais. A população da cidade mais do que dobra durante a festa e chega a mais de 1,5 milhão de pessoas. Multidões sem fim subiam e desciam as ruas de paralelepípedos, absorvendo o espetáculo. E, para minha profunda irritação, soltando inúmeros rojões.

As Fallas acontecem na cidade inteira ao mesmo tempo. Mas toda tarde a festa tinha um único ponto focal: a mascletà (exibição de fogos de artifício) na praça da Prefeitura.

Cheguei cedo, mas centenas de milhares de pessoas já estavam na minha frente. Às duas da tarde a cerimônia começou, primeiro como exibição regular de fogos de artifício; explosões brancas brilhantes acompanhadas do ribombo dos ecos.

Então o som se tornou o principal evento, uma sensação física quando 120 decibéis vibraram por todos os quilos de carne e osso na praça lotada. Com um estrondo final de abalar corações, acabou. A multidão soltou um suspiro, e, então, toda a massa ali apinhada explodiu num viva coletivo.

Embora suas origens pagãs ainda permeiem a festa, há um costume das Fallas que é inegavelmente católico: a Ofrenda.

No último fim de semana, mais de 100 mil falleros prestam homenagem à padroeira de Valência com oferendas de flores. Fui à Plaza de la Virgin assistir ao espetáculo. No centro da praça havia uma estátua da Virgem com 15 metros de altura; cercada por um esqueleto de madeira. Os falleros passavam por ela e entregavam seus buquês a uma equipe, que os colocava sobre a estrutura. Quando me aproximei, notei que, ao terminar de fazer sua oferenda, a maioria dos falleros estava em lágrimas.

Na tarde de domingo só restava um evento: La Cremà, a noite do fogo.

Em teoria, todas as fallas infantiles são queimadas às dez da manhã, e as imensas, ao bater a meia-noite. Infelizmente, não há carros e bombeiros suficientes para estar em todas as fallas ao mesmo tempo, e a queima é escalonada.

Vários bombeiros chegaram com uma mangueira imensa ao Casal Esparteros pouco depois das dez da manhã, e todos se reuniram em torno da falla infantil. Uma série de cargas explosivas já fora cuidadosamente disposta entre as delicadas figurinhas. Os falleros, geralmente animados, se calaram.

A rainha e a princesa, María Cruz e Gemma Gómez, avançaram e acenderam a carga que destruiria sua falla.

Houve uma série de explosões rui- dosas e relâmpagos de luz; então, lentamente, chamas alaranjadas começaram a abrir caminho falla acima. As figuras derreteram, estalando até que nada restasse senão o esqueleto de varas que as mantivera em pé.

Gemma ficou de lado, abraçada por María, lágrimas correndo pelo rosto. “Acabou”, disse ela baixinho.

Afastei-me andando da cena melancólica em busca de uma falla gigante e me decidi por uma erupção de cores de 23 metros com tema de Bollywood: a Falla Convento Jerusalén.

Quando as chamas subiram cinco, seis andares no céu da noite, virei-me para fitar os milhares de rostos iluminados pelo fogo, voltados para cima com assombro.

A cremà parecia atemporal, algo antigo, comunal e catártico que permitia a todos os indivíduos da cidade recomeçarem do zero. Naquela noite, ao voltar a pé para o hotel, avistei uma pequena pilha de rojões não detonados. Peguei um, acendi e o joguei no ar, onde explodiu com um estalo delicioso.

E quer saber? Eu gostei.

Por LIA GRAINGER