Mistério médico: Será mesmo a gota?

Confira a incrível história de como a insistência de um paciente levou os médicos a diagnosticarem um problema sério de saúde.

Redação | 10 de Dezembro de 2019 às 10:13

paitoonpati/iStock -

Às vezes, é a insistência de um paciente que leva os médicos a diagnosticarem um problema sério de saúde. Veja a incrível história relatada no Mistério médico deste mês.


O paciente: Graham (nome alterado para proteger a privacidade), oficial naval de 41 anos

Os sintomas: Lesões espontâneas dos tecidos moles

O médico: Dr. Volodko Bakowsky, reumatologista do Centro de Ciências de Saúde QEII, em Halifax, Canadá


Graham era um homem ativo, que jogava futebol regularmente e preferia caminhar a pegar o carro. Quando tinha 30 e poucos anos, foi ao médico por causa de dor e inchaço no dedão do pé direito. O capitão da marinha pensou que talvez o tivesse quebrado ao chutar uma bola, mas ficou surpreso ao saber que tinha gota, um tipo de artrite inflamatória causada pelo nível elevado de ácido úrico no sangue. Desde então, Graham ficou bem ao tomar a medicação para reduzir os níveis de ácido úrico.

No entanto, o surgimento de outras lesões era intrigante. Certa manhã, em 2011, cerca de cinco anos depois do diagnóstico da gota, Graham acordou com uma dor tão grande no joelho direito que mal conseguia andar. A ressonância magnética pedida pelo médico das Forças Canadenses mostrou ruptura do tendão do quadríceps, o que era estranho. Anos antes, Graham havia sofrido uma lesão semelhante quando driblou outro jogador de futebol. Mas, dessa vez, ele não conseguia pensar em nada que o pudesse ter machucado.

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Com fisioterapia, o quadríceps de Graham melhorou gradativamente. Então, mais tarde no mesmo ano, seu tendão de Aquiles direito rompeu parcialmente enquanto ele dormia. Aquilo era mais doloroso que a lesão no joelho.

Eu estava bem preocupado”, diz Graham. “Pensei: o que está acontecendo comigo?

Essas lesões misteriosas estariam mesmo relacionadas à artrite ou seriam algo completamente diferente? Não era nada fácil acordar com a dor lancinante que levou semanas para passar, e Graham não queria sentir aquilo de novo.

Em 2013, depois de ser transferido para Halifax, onde tinha acesso regular ao médico, Graham decidiu investigar as lesões. O clínico geral o encaminhou ao Dr. Volodko Bakowsky no Centro de Ciências de Saúde QEII, solicitando que ele confirmasse que Graham sofria mesmo de gota, e se isso tinha alguma coisa a ver com as rupturas inexplicáveis dos tecidos moles. “Quando as coisas ficam estranhas, os pacientes comumente são encaminhados para um reumatologista”, diz Bakowsky. Mas, a partir da história de Graham – ele tinha um membro da família com gota, e a medicação parecia controlar o ácido úrico –, Bakowsky não viu motivos para duvidar do diagnóstico.

O restante da história médica de Graham não parecia importante. Um exame de sangue anterior mostrou nível baixo de vitamina C, mas Graham vinha tentando compensar isso comendo mais laranjas. Ele se consultou com um gastroenterologista após uma viagem à Itália com a família – seu estômago o incomodava depois que ele fazia refeições gordurosas com vinho tinto –, mas o médico simplesmente o aconselhou a maneirar no vinho. Afora isso, Graham estava em boa forma, conta Bakowsky.

Ele era forte e saudável, e sua alimentação era adequada.” Com relação às lesões dos tecidos moles, Bakowsky suspeitou que Graham estivesse exagerando na atividade física. “Pensei: esse cara ainda não percebeu que as coisas começam a dar defeito depois dos 40 anos!

Graham, no entanto, não se conformava. Ele tinha certeza de que algo estranho estava causando as lesões. Bakowsky se lembra de que, ao tentar finalizar a consulta, seu paciente continuou a fazer perguntas. “Ele merece muito crédito. Não deixou o assunto esfriar.”

Bakowsky pediu alguns exames adicionais. “Tentei pensar no sentido oposto: o que causaria lesão dos tendões a partir de um trauma mínimo?” Escorbuto me veio à mente. É causado por deficiência de vitamina C. Antigamente, os marinheiros costumavam ter a doença pelo fato de a alimentação no mar ser pobre em frutas e legumes frescos. A vitamina C é essencial para a manutenção do tecido conjuntivo, de modo que, sem ela, músculos e tendões ficam mais vulneráveis à lesão. Mas o escorbuto não é normalmente visto no Canadá, onde as pessoas têm acesso a alimentos de boa qualidade. Menos de 3% dos canadenses têm deficiência de vitamina C.

“Como alguém poderia ter escorbuto comendo frutas e legumes?”, pensou Bakowsky. “A única forma seria doença celíaca.” Nas pessoas com essa doença autoimune, o consumo de trigo e outros grãos com glúten lesiona as paredes do intestino delgado e podem acabar interferindo na absorção de nutrientes. O médico pediu um exame para doença celíaca, afirmando para seu paciente que o resultado seria negativo.

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Mas isso não aconteceu. “Ele deu fortemente positivo”, conta Bakowsky. Em um exame subsequente de vitamina C, o nível foi quase indetectável.

O diagnóstico de doença celíaca, confirmado depois pelo gastroenterologista, provavelmente explicou por que o estômago de Graham estava mal na Itália. “Não foi o vinho. Aposto que foi a massa.” Ele não apresentou outros sintomas, o que não é incomum.

Parentes próximos de alguém com doença celíaca têm 1 chance em 10 de desenvolver a doença (na população geral, a probabilidade é de uma em 100). Os filhos de Graham não tinham a doença, mas sua mãe e sua sobrinha fizeram o exame e descobriram que também tinham. Graham suspeitou que seu falecido avô também pode ter tido a doença, porque ele reclamava com frequência de problemas estomacais.

Hoje, nos encontros familiares, o cardápio é todo sem glúten. Mudar a alimentação não é fácil, diz Graham, que sente muita falta de comer baguetes, mas é uma solução imediata e ajudará a prevenir complicações futuras como a osteoporose. “Estou realmente feliz que o médico tenha descoberto essa questão familiar que provavelmente tínhamos desde sempre.”

POR LISA BENDALL